Spam por Telefone
Rec 29-mar-2008 19:13
De uma maneira geral, procuro evitar escrever sobre minhas frustrações/reclamações com o cotidiano
-- apesar de ser um tema muito recorrente em muitos blogs e de atrair considerável
feedback/simpatia/solidariedade. Um incidente relativamente banal ainda há pouco me motivou a
abrir uma exceção.
O telefone (o fixo, mas sem fio) toca, saio pela casa procurando onde o deixei (ainda preciso inventar
algum treco eletrônico que eu grite "telefone, onde você está?" e ele responda "tou aqui na cozinha!")
Atendo, uma moça com a característica voz empostada de telemarketing começa:
-- Boa noite, o Sr. Marco Antônio está?
-- Boa noite, sou eu mesmo.
-- Sr. Marco Antônio, antes de mais nada informo que esta ligação pode estar sendo gravada. O motivo do
nosso contato é que o sr. foi contemplado com um cartão das lojas Renner, sem anuidade,...
-- Querida, por favor, pare, eu não tenho interesse.
-- ... que permitirá ao senhor parcelar em até...
-- Como eu disse, não tenho interesse.
-- [nem sei reproduzir o que ela disse, parei de prestar atenção]
-- Querida, por favor, pare. Eu já disse que não tenho interesse.
-- Qual o motivo?
-- Eu não gosto de spam via email, pior ainda por telefone. Se eu quiser um cartão da Renner,
eu vou lá e faço.
-- Como é, senhor?
-- Recebo ligações demais desse tipo de oferta e as acho muito inconvenientes. Por princípio,
evito comprar em lojas que fazem isso.
-- Olha, senhor... veja bem... isso é normal... as maiores lojas do brasil -- Renner, TIM,
Claro -- têm grandes departamentos de telemarketing que fazem isso... se... se todos
pensassem como senhor,... não haveria emprego... nenhuma telemarketing teria emprego.
-- Pode ser, mas é direito meu não ser importunado pelo que não quero ouvir. Como eu disse,
se eu quiser um cartão, eu vou lá pessoalmente e faço.
-- Boa noite, senhor!
Apesar de eu ter tentado reproduzir com a melhor fidelidade possível o diálogo, provavelmente
eu não lembrei nem minhas palavras exatas, nem dela. Mas o espírito foi mais ou menos esse, mesmo.
Imediatamente lamentei que meu
gravador de telefone
estivesse fora do ar (há algumas semanas eu venho trabalhando em melhorar o firmware) -- eu teria adorado
ter gravado essa conversa surreal e postado aqui. Mas o bina do telefone pegou o número de origem:
51-3065-9298.
O incidente atiçou minha curiosidade e pretendo investigar que empresa de telemarketing é essa.
No afã da minha indignação, cheguei a disparar o navegador e catar a página das Lojas Renner para
lançar uma reclamação. Mas, pensando bem, não acho que tenha elementos para fazê-lo -- a pessoa se
identificou como a mando da Renner, mas sei lá se isso é verdade. Até acho provável que seja, mas,
em rigor, qualquer pessoa pode me ligar e contar qualquer história. Tudo que eu posso realmente
afirmar é que parece haver pelo menos um funcionária de telemarketing que parece acreditar que eu
sou obrigado a ouvir o discurso dela.
Meu número de telefone parece ser mesmo premiado. Já há alguns meses, quase duas vezes por semana
liga gente pra cá atrás de um "André Maia", que não sei se jamais morou aqui -- já teve vez de eu
perder uns bons dez minutos explicando para três níveis de atendentes que aqui não mora ninguém com
esse nome, que o cadastro deles está errado e que por favor, parem de me ligar procurando por essa
pessoa. E pelo menos uma vez por dia ligam aqui perguntando "É do Cartório?"
Ah, claro, eu posso mudar de número de telefone, mas isso tem um monte de inconvenientes
e não necessariamente resolve. Talvez a maneira mais simples seja fazer como a gente vê nos
filmes americanos: colocar uma secretária eletrônica, deixando no viva-voz e atendendo somente
as ligações que me interessam. Mas ainda assim eu tenho de filtrar.
Será que existe alguma aparelho tipo "misto secretária eletrônica e PABX", em que eu possa:
- Programar "listas negras": se o número do originador da chamada estiver nessa lista, meu
telefone sequer toca, mas o originador terá a impressão de que ele tocou até disparar.
- Programar "listas brancas": se o número do originador estiver nessa lista, meu telefone
vai tocar direto.
- Números que não caiam nessas listas vão direto para a secretária eletrônica -- que pode
ou não estar com o viva-voz ativado.
Telefones celulares GSM costumam ter suporte a listas negras. Mas não têm suporte a listas
brancas nem ao lance de cair na secretária quando não bate em nenhuma das duas listas.
Eu, que tenho o hobby de criar esses aparelhinhos com microcontroladores, já estou matutando
aqui como seria relativamente fácil adaptar meu
gravador de telefone
pra fazer isso -- quem sabe até transformá-la em uma
unidade de resposta audível.
Seria divertido -- se o cara não estivesse nem na lista branca nem na negra, ela atenderia, dizendo:
Olá, aqui é a Geladeira -- a Secretária Eletrônica está de férias. Como pode notar, aqui não é o cartório.
Se procura o André Maia, tecle 8. Se não, aguarde o bipe, deixe um recado que eu colo na minha porta.
Quando o Kiko chegar ele lê.
(O legal é que podemos integrar com o bina, para, se a ligação vier fora do Brasil,
ele tocar a versão em inglês da mensagem, que provavelmente poderia omitir o André Maia
e o Cartório.)
Ao teclar 8, o cara receberia a seguinte mensagem:
Você é o trigésimo sétimo mané a ligar pra cá procurando por um tal de André Maia.
Tenho uma má notícia pra você: aqui não mora ninguém com esse nome, ninguém aqui faz a
menor idéia de quem ele seja, nem se jamais morou aqui, nem pra onde foi, nem se jamais
existiu. Enfim, seu cadastro está incorreto -- por favor, remova esse telefone do seu
cadastro e, de preferência, não ligue de novo.
Claro, o "trigésimo sétimo" seria um contador incrementado cada vez que alguém
teclasse 8, não só para frustrar o interlocutor, mas também para eu saber de quantas eu me
livrei. Há uma doce ironia aqui -- usar tecnologia de call center para dar o troco nos
call centers.
<modo-nerd="ligado">
O que eu queria mesmo é um equivalente dos meus filtros de spam que eu tenho no meu email,
mas isso ainda está um pouco acima da tecnologia atual. Explico: a parte central do meu
sistema de filtragem de spam (
maildrop+
bogofilter)
analisa o conteúdo da mensagem contra perfis conhecidos,
que eu pré-programei, de spams e mensagens legítimas. Se a mensagem for classificada como
spam, o servidor da minha caixa postal (lá da
Tempest) a retira
da minha caixa de entrada, jogando-a em outra pasta para a improvável hipótese de eu querer
procurar um possível erro de classificação lá. Mas o importante é que eu nem sequer baixo os
spams -- eles ficam retidos no servidor.
Hoje em dia seria inviável eu viver sem meu filtro de spam: para terem uma idéia,
do começo do ano pra cá, ele reteve cerca de 200.000 mensagens totalizando 862
mebibytes
descompactados ou 148 mebibytes após compactação. Isso dá uma média de 2.200 spams por dia.
Se impresso frente-e-verso, daria a bagatela de 315 resmas ou 737kg de papel A4. Isso dá uns 9,8 MiB por
dia (parece muito, mas isso equivale a uns 119 bytes por segundo, ou apenas 0,091% do nosso link de entrada
de 1 mibibit por segundo -- razão pela qual a gente não "sente".)
Isso tudo tirando os quase 20 por dia que ainda passam (meu filtro é otimizado para minimizar falsos positivos,
o que significa que ele dá muitos falsos negativos -- prefiro receber alguns poucos spams do que perder
um email importante) e eu mando para retreinamento. Compare isso com as cerca de 50 mensagens legítimas,
"de verdade", que eu recebo (e das quais só umas 30 são de humanos -- umas 20 por dia são alertas
e relatórios de sistemas automáticos.)
</modo-nerd>
Há várias razões pelas quais existe tanto spam:
- É rápido e barato mandar milhões de mensagens de correio pela Internet. Tomemos a quantidade spam
que eu recebo: o tamanho médio de cada mensagem é de 4.523 bytes. Em um link Velox com 300 mibibytes
de velocidade de subida, dá pra mandar por volta de 730 mil mensagens por dia a um custo de R$ 162,00
ou R$ 0,00022 por mensagem, incluindo R$ 3,00 de energia elétrica de um computador ligado 24 horas
de um dia. E isso porque conectividade é cara e lenta aqui no Brasil, especialmente em Recife.
Mas se apenas um desses caras comprar o produto (uma taxa de resposta de 0,00014%) e ele custar
mais do que R$ 162,00, quem enviou o spam já saiu no lucro. Há histórias e histórias na Internet
de gente que ganha o suficiente para viver uma vida confortável só de comissão de vendas baseado
em "email marketing", como eles chamam.
- Spams são ótimos vetores de fraudes (especialmente aqueles emails de recadastramento falsos que
convencem os incautos a informarem a senha do cartão do banco, dados pessoais, etc., chamados
de "phishing") e de programas
que exploram falhas nos navegadores e programas de correio para obter controle remoto do seu
computador, transformando-o, por vezes sem seu usuário saber, em um soldado-zumbi de um exército
virtual conhecido como botnet.
Em comparação, a maioria das pessoas não vira um zumbi ao receber spam por telefone (exceto, talvez, em
algum filme "B" de terror). Mandar spam por telefone custa bem mais caro -- linhas telefônicas, call centers,
salários de operadoras de telemarketing surtadas --, mas ainda assim irrita um bocado. Isso explica por
que tem bem menos que spam de email. Mas ainda assim tem muito por uma razão simples: dá retorno. Muita
gente confunde crédito com dinheiro e por isso deseja, fortemente, mais um crediário para se endividar.
Com a explosão dos meios de comunicação, barateamento dos custos de telecomunicações e o desespero crescente
do comércio em vender a todo custo, suspeito que muito em breve não vai dar pra viver sem um filtro de telespam
(meu neologismo para "spam por telefone").
Nos EUA,
há uma lei
para penalizar spammers,
outra para restringir
o telespam e
outra ainda pra coibir o "junk fax"
(moda que, felizmente, ainda não pegou aqui no Brasil) -- taí uma boa coisa que o Azeredo podia tentar fazer, ao invés
de outras
tentativas desastradas dele.
Em última instância, em toda conversação em que nos engajamos, estamos implicitamente fazendo uma aposta
de que ela valerá a pena. Pra mim, telemarketing é telespam e não vale o meu bem mais precioso, o único
genuinamente irrecuperável -- meu tempo.
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